sábado, 20 de dezembro de 2008

O Fundamento do Direito



Procurando apenas alcançar uma profissão rendosa, há estudantes de direito que só cuidam de saber interpretar bem as leis, manejar fórmulas, combinar conceitos, preparando-se assim para, numa dialética avisada, poderem, em futuras causas, defender indiferentemente um ponto de vista ou o seu contrário.

O direito é para muitos simplesmente um conjunto de preceitos impostos coactivamente pelo Estado, e apanágio dos seus servidores é a sua interpretação e aplicação... habilidosa aos casos correntes. Tirar do direito a norma que convém, atribuindo àquele o conteúdo mais adequado aos próprios interesses, como se ele fosse vazio de conteúdo seu, é a única finalidade do rábula cujo “espírito” importa destruir para dignificação das profissões forenses. É este espírito o gerador do desdém que hoje cobre a ciência do direito e os juristas, é ele a causa do humilhador sorriso dos que não tendo a alma rígida de Catão para condenar, encontram na própria elasticidade de consciência suficiente indulgência para perdoar os expedientes, os sofismas de que julgam formada toda a vida jurídica, como se fossem “verduras” duma profissão agarotada. Compete a todos os que a ela se dedicam protestar contra um tal conceito. Devemos ter orgulho da nossa profissão; mas orgulho sincero, o qual pressupõe o conhecimento do seu valor.

O direito não se reduz ao formalismo dos seus conceitos, das suas categorias, das suas classificações e teorias, nem mesmo às suas fontes formais; não se reduz tão pouco à vontade incluída nestas fontes formais, à vontade do legislador (lato sensu). Essas mesmas fontes são também processos de ordem técnica, são o lado artificial do direito, de carácter principalmente voluntarista, mas não são o próprio direito. São as vestes que o cobrem, indispensáveis para lhe dar a precisão exigida pelo seu carácter imperativo e necessárias para a organização duma coacção eficaz. Isto é, a aparelhagem técnica assegura ao direito a sua praticabilidade.

Mas se o formalismo visa somente a “realização” do direito, e não se justifica nem sustenta a si mesmo, onde encontrar a razão explicativa da existência e evolução do direito, o “segredo da sua vida”, e mais ainda o seu fundamento?
São numerosos os escritores que na vida social vêem a génese do direito. Já a escola histórica o considerava um produto das condições históricas, revelado pela consciência do povo. Durkheim lançando as bases da escola sociológica vê na sociedade um ente psíquico, distinto dos seus componentes, e portanto gerador de factos sociais, que a ele se ligam como o efeito à causa. Entre esses factos está o direito. E querendo atribuir à moral e ao direito a força obrigatória que não resulta da mera constatação dos factos vai tão longe no seu misticismo que diviniza a sociedade. A Divindade é um símbolo da sociedade; esta exige racionalmente dos indivíduos a mesma deferência que a Deus tributam os crentes.

Ora a concepção da sociedade como entidade independente dos seus membros componentes é pura fantasmagoria... E conseguintemente a consciência social - pretensa base do direito - que tem por pressuposto a unidade psíquica da sociedade, uma criação imaginativa absolutamente irreal. É certo que a sociedade não é simplesmente a soma dos indivíduos que a compõem. As psiques individuais agregadas influenciam-se reciprocamente e o seu todo apresenta uma certa unidade. Mas é uma unidade de coordenação, uma maneira de ser dos indivíduos e não um ente diverso destes. Numa palavra, a sociedade não é uma mera justaposição de indivíduos, mas também não é um organismo; é uma organização.
Destruída a noção de consciência social, Duguit dá por fundamento ao direito o conjunto das consciências individuais. O estado especial destas consciências, que gera o direito, tem por sua vez a sua causa em dois sentimentos: o sentimento de interdependência, e o sentimento da justiça. Mas estes sentimentos são somente dois factos, sem qualquer conteúdo objectivo. O seu conteúdo é totalmente empírico, subjectivo. Assim considerado, o sistema de Duguit se nos mostra a importância da opinião pública na elaboração do direito não nos dá o fundamento deste. Não nos fornece o critério de aferição do valor dessa mesma opinião pública; as bases do direito são, por isso, instáveis e movediças. A consciência social (no sentido de soma das consciências individuais) ou a opinião pública, é simplesmente a resultante duma luta - é o predomínio duma opinião, duma ideia. É a opinião mais forte. Ou seja: o direito é a força.

O positivismo jurídico ainda mais claramente considera a força como sendo o próprio direito. A vontade dos governantes é o direito, e eles são os governantes porque são os mais fortes. É certo que essa vontade não é arbitrária; tem de ceder ante as demais forças sociais. E da luta permanente entre interesses, paixões e ideias adversas resulta a lei. Esta é um equilíbrio mecânico entre várias forças. Nem importa que entre essas forças se contem as que têm carácter moral, ideal, e religioso, como admitem Ripert e Bunge, porque a noção de moral, como todas as noções metafísicas, é para o positivismo de carácter subjectivo.

Simples opiniões que variam de indivíduo para indivíduo.
Procurar o direito na vida social é deixar aos factos a função de se regularem a si mesmos. As paixões, os interesses, tudo o que o direito precisamente devia evitar, entregue a si mesmo, só encontra uma barreira na luta com interesses, com paixões adversas. A mecânica das forças traçaria assim a linha da evolução jurídica.
…Sem do direito natural não há possibilidade de encontrar um princípio de ordem, uma finalidade em vista da qual se realize a organização da vida social.

Todas as correntes que ao de leve criticamos excluem a metafísica. São, filosoficamente, positivistas. E «o debate que o positivismo levanta concentra-se nesta proposição essencial: o sensível encerra toda a esfera do cognoscível; o homem por sua própria natureza ignora o que não é da ordem empírica”. Daí, a negação de qualquer valor absoluto no direito. Mas, a afirmação da impotência da razão humana para se elevar acima do relativismo dos fenómenos, está longe de ser verdadeira e os mesmos que a formulam a contrariam no seu labor científico. Certamente, na ciência jurídica, só devemos servir-nos da observação e da razão; mas demos à razão o que lhe pertence; não é lícito diminuir a sua esfera de acção.

Ora da observação atenta dos actos humanos induz-se a existência duma predisposição do homem para agir de certo modo. É necessária, contudo, uma observação prudente e principalmente um raciocínio lúcido para pôr de parte os actos que têm a sua origem em inclinações, artificialmente criadas por causas externas, pelas paixões, pela imitação, pelo hábito, que é como que uma segunda natureza. E assim se corrobora a existência de inclinações naturais que são a revelação da nossa natureza comum. Mas, uma natureza com propriedades estáveis e universais tem, por certo, uma finalidade. A sua estabilidade ou é devida ao acaso ou só num fim pode ter justificação. O conhecimento perfeito da natureza implica, portanto, o conhecimento do seu fim. Em todos os domínios governados pela necessidade, o seu fim realiza-se forçosamente em obediência ao plano divino da criação. Na natureza humana, porém, domina a liberdade; o homem é chamado a participar no governo de si mesmo. É fisicamente livre de seguir a sua natureza, de conseguir a sua perfeição. O homem deve seguir o caminho que a natureza lhe indica; mas a lei natural para ele somente se reveste duma necessidade moral. Os preceitos da lei natural, sendo a tradução em regras normativas das inclinações naturais, são por isso mesmo instintivos, sem deixarem de ser racionais, porque a razão segue a própria natureza. O seu conhecimento vem depois, pela reflexão sobre as próprias inclinações. É governando as nossas inclinações, diz G. Renard, que a razão toma consciência de si mesma. Esses princípios correspondentes às várias tendências do homem são universais e imutáveis e de todos conhecidos. Podem reduzir-se a um só: bonum est faciendum. Esta expressão não é, porém, uma fórmula desprovida de conteúdo material, porque a razão prática considera “bem” o que é conforme àquelas tendências naturais nos diversos campos de actividade humana.

As deduções dos primeiros princípios, como lhes chama S. Tomás, perdem gradualmente a mutabilidade e universalidade destes, à medida que vão sendo aplicadas a campos de acção mais restritos. Os princípios do direito natural dão-nos uma orientação, uma finalidade na regulamentação das relações sociais, e essa finalidade encontra-se imanente em toda a ordem jurídica, em todas as normas. Mas mais nada.
A vontade do legislador, consoante o direito natural perde a sua precisão na sua aplicação a matérias cada vez mais concretas, adquire maior liberdade, para suprir essa mesma falta de precisão.
Não devemos, portanto, pedir ao direito natural o que ele nos não pode dar: uma regulamentação detalhada das relações sociais. Foi esse o erro dos jusnaturalistas dos secs. XVI a XVIII que pretenderam deduzir um sistema completo de normas da natureza humana.
Não pensaram também que ao lado do indivíduo, cuja natureza é social, existe a sociedade, que é precisamente a coordenação dos interesses dos indivíduos e dos grupos num interesse mais vasto, no bem comum que constitui o objectivo do direito.
O elemento moral do direito - ou seja o direito natural - não é todo o direito.
Primeiramente, são, em regra, só as normas de moral social que entram na elaboração jurídica, porque assim o exige o próprio fim da organização jurídica, e ainda a utilização dessas normas está condicionada pelas possibilidades dos meios de que se serve a técnica do direito.

E depois os princípios do direito natural, gerais e indeterminados, só se concretizam na sua aplicação às condições diversas e variáveis da sociedade a que se destinam. Essa fusão do elemento moral com o elemento económico ou experimental com base no bem comum dá-nos o plano da elaboração jurídica. É função do legislador o sacrificar um ou outro elemento, segundo as circunstâncias e tendo sempre em vista o bem comum.
É pouco o que nos dá o direito natural? É o bastante para fundar solidamente o direito positivo. O direito natural não é um ideal em relação ao direito positivo. É a sua base. Está no seu ponto de partida, e não na sua meta, o que não quer dizer que não seja um progresso da ordem jurídica, o predomínio cada vez maior do elemento moral, nos elementos constitutivos do bem comum.

Não é, pois, muda a natureza quanto à orientação que devemos dar à nossa conduta. A justiça (virtude fundamental da moral social) não se reduz a uma convenção, não é uma palavra vã, como Ovídio pretendia, seguindo a escola de Epicuro:
Nec natura potest justum scernere iniquum.

É uma realidade. E a primeira maneira de a servir é defender a sua existência, é colocá-la acima do indivíduo e do Estado, da Liberdade e da Autoridade, como princípio superior da organização social.

PROFESSOR DOUTOR MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA
(publicado na revista "Acção", Janeiro de 1933)